Um dos maiores desafios da cardiologia moderna é identificar, com precisão, quem realmente corre o maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares e, assim, intervir de forma precoce e eficaz.
Para dar luz a essas pesquisas, um novo estudo pós-hoc do SPRINT Trial, publicado no Journal of the American College of Cardiology, reacende o debate sobre essa questão ao avaliar o desempenho do PREVENT Calculator, a mais recente ferramenta de predição de risco desenvolvida pela American Heart Association (AHA).
O que é o PREVENT Calculator
Lançado oficialmente em 2024, o PREVENT Calculator (Predicting Risk of Cardiovascular Disease Events) é uma ferramenta estatística criada pela AHA em colaboração com pesquisadores de universidades norte-americanas e publicada no JAMA Network. Seu objetivo é calcular o risco de um indivíduo desenvolver doenças cardiovasculares, como infarto, AVC e insuficiência cardíaca, ao longo de 10 ou 30 anos, mesmo quando ainda não há sinais clínicos dessas condições.
Diferentemente das antigas Pooled Cohort Equations (PCE), usadas desde 2013, o PREVENT adota uma abordagem mais abrangente e inclusiva. Ele removeu a variável “raça” do cálculo, considerada uma medida sociocultural e não biológica, e passou a incluir novos fatores metabólicos e renais, como o índice de massa corporal (IMC) e a taxa de filtração glomerular estimada (eGFR). Além disso, expandiu sua faixa etária de aplicação para adultos a partir dos 30 anos, permitindo uma estimativa de risco de longo prazo.

Segundo a Harvard Health Publishing, o PREVENT representa uma evolução no conceito de saúde cardiovascular, incorporando o modelo CKM (cardiovascular–kidney–metabolic), que considera a interligação entre o coração, os rins e o metabolismo. A ferramenta foi desenvolvida a partir de uma base de dados de mais de 6 milhões de adultos dos Estados Unidos, de diferentes etnias e condições de saúde, garantindo maior diversidade populacional e precisão nos cálculos.
Aplicações clínicas e contexto do estudo SPRINT
O SPRINT Trial (Systolic Blood Pressure Intervention Trial), conduzido pelo National Heart, Lung, and Blood Institute (NHLBI), é uma das pesquisas mais influentes da última década em hipertensão.
O estudo original, publicado em 2015, avaliou se uma meta de pressão arterial sistólica abaixo de 120 mmHg (tratamento intensivo) oferecia benefícios em relação à meta tradicional de 140 mmHg em pacientes com risco cardiovascular elevado, mas sem diabetes ou AVC prévio. Os resultados mostraram uma redução de 25% nos eventos cardiovasculares e 27% na mortalidade total entre os pacientes submetidos ao tratamento intensivo.
A nova análise pós-hoc, publicada neste ano, utilizou o PREVENT Calculator para recalcular o risco de 10 anos de doença cardiovascular entre os 6.554 participantes do estudo. O objetivo foi verificar como os diferentes níveis de risco, segundo o novo modelo, influenciariam o benefício do tratamento intensivo da pressão arterial.

Os resultados mostraram que, embora o benefício relativo do tratamento intensivo tenha sido consistente em todos os grupos, o benefício absoluto foi maior entre os participantes com risco mais elevado de acordo com o PREVENT. Em termos práticos, quanto maior o risco calculado, maior a redução real de eventos cardiovasculares obtida com o tratamento intensivo.
Avanços e limitações
Um dos achados mais relevantes foi a reclassificação de risco proporcionada pelo novo modelo. Em comparação às antigas PCE, o PREVENT realocou muitos indivíduos considerados de alto risco para categorias intermediárias ou mais baixas. Isso se deve, em parte, à exclusão do critério racial e à inclusão de novas variáveis clínicas, como função renal e obesidade.
Contudo, essa reclassificação também levanta questionamentos: pacientes que anteriormente seriam considerados de alto risco e candidatos a terapias mais intensivas podem agora ser classificados como de risco moderado. Isso suscita dúvidas sobre o limiar de intervenção ideal e sobre possíveis perdas de benefício terapêutico em alguns subgrupos.
Outro ponto relevante diz respeito aos efeitos adversos do tratamento intensivo. Embora o SPRINT tenha mostrado benefícios consistentes, ele também registrou aumento de eventos como hipotensão, síncope e lesão renal aguda. Assim, a decisão sobre metas de pressão arterial deve considerar o perfil clínico individual e a tolerância do paciente, especialmente entre idosos e pessoas com fragilidade.
Impacto e perspectivas para o Brasil
A chegada do PREVENT Calculator representa um avanço importante na estratificação de risco cardiovascular. Porém, como foi desenvolvido com base em dados norte-americanos, sua aplicação no contexto brasileiro requer cautela. As diferenças genéticas, étnicas, socioeconômicas e de acesso à saúde podem afetar a precisão das estimativas em populações locais.
Mesmo assim, o modelo traz lições valiosas para a prática clínica no Brasil. Ele reforça a importância de avaliar o risco cardiovascular de forma integrada, considerando obesidade, função renal e condições metabólicas. Além disso, oferece aos cardiologistas uma ferramenta adicional para embasar decisões compartilhadas com o paciente, especialmente em casos de hipertensão estágio 1, nos quais a necessidade de tratamento medicamentoso pode depender do risco global.













