Um novo estudo publicado na revista Current Problems in Cardiology, da editora ScienceDirect, apresentou uma das iniciativas mais ambiciosas já realizadas para mapear o cuidado cardiovascular no Brasil. Intitulada iCardio: The Brazilian Population-Based Real-World Data Platform, a pesquisa reuniu dados clínicos de diferentes regiões do país, oferecendo uma visão inédita sobre o perfil de pacientes, a adesão a tratamentos e as lacunas existentes na assistência cardiológica.
Desenvolvida por um grupo de pesquisadores brasileiros, a plataforma integra informações de hospitais, unidades básicas de saúde e registros públicos, formando um banco de dados robusto sobre doenças cardiovasculares. Segundo o artigo publicado em setembro de 2025, o objetivo principal é compreender como as doenças cardíacas se manifestam no mundo real e como fatores socioeconômicos e regionais influenciam o acesso ao tratamento.
Um retrato do cuidado cardiovascular no Brasil
Os dados iniciais da iCardio revelam um cenário desafiador. Em média, apenas 54% dos pacientes com hipertensão estão com a pressão arterial controlada, e menos de 40% dos pacientes com histórico de infarto fazem uso regular de estatinas ou antiplaquetários, medicamentos essenciais para prevenir novos eventos cardiovasculares. Além disso, há grandes disparidades regionais: o controle de fatores de risco é significativamente menor nas regiões Norte e Nordeste em comparação ao Sudeste e Sul.
Esses resultados reforçam o que a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) já vem alertando: embora o Brasil tenha avançado no diagnóstico e no acesso a tratamentos de alta complexidade, o acompanhamento contínuo e a prevenção secundária ainda enfrentam obstáculos estruturais. O estudo também destaca que a ausência de sistemas integrados de informação dificulta o monitoramento de longo prazo e o planejamento de políticas públicas.
Big Data e a transformação da cardiologia brasileira
A plataforma iCardio representa um passo importante na digitalização e na análise de dados em saúde. Por meio de ferramentas de inteligência artificial, o sistema identifica padrões epidemiológicos e permite o cruzamento de informações entre condições clínicas, indicadores sociais e desfechos hospitalares.
Segundo os pesquisadores responsáveis, a base de dados já reúne informações de mais de 500 mil pacientes com diferentes diagnósticos cardiovasculares, incluindo insuficiência cardíaca, doença arterial coronariana e arritmias. Essa amplitude oferece um panorama mais realista sobre a prática médica cotidiana e ajuda a identificar pontos críticos de descontinuidade no cuidado.

O cardiologista Dr. Gustavo Ferreira, um dos autores do estudo, explica que “a ideia é transformar dados isolados em conhecimento útil. Com a iCardio, conseguimos enxergar onde estão as falhas do sistema, avaliar resultados e propor estratégias que realmente melhorem a vida dos pacientes”.
Implicações para políticas públicas e pesquisa clínica
A partir das análises iniciais, os autores sugerem que o uso do iCardio pode contribuir para o planejamento de políticas públicas baseadas em evidências. Os dados também podem orientar campanhas regionais de prevenção e auxiliar pesquisadores na avaliação da eficácia de novas terapias em condições reais, fora dos ambientes controlados de ensaios clínicos.
Além disso, a plataforma possibilita o acompanhamento de tendências emergentes, como o aumento da insuficiência cardíaca entre adultos jovens e o impacto do sedentarismo nas últimas duas décadas. Essas informações são fundamentais para antecipar demandas e adaptar estratégias de saúde populacional.
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) já destacou em relatórios recentes a importância do uso de big data para aprimorar a vigilância de doenças crônicas na América Latina. Nesse contexto, o iCardio coloca o Brasil em posição de destaque, alinhando o país às tendências internacionais de medicina baseada em dados.
O futuro do cuidado cardiovascular no país
Com a expansão prevista para os próximos anos, a equipe da iCardio pretende incluir mais instituições de saúde e integrar novas variáveis, como dados genéticos e socioambientais. Essa evolução deve ampliar o potencial preditivo da plataforma, permitindo identificar precocemente grupos de maior risco.
A iniciativa também reforça o papel da colaboração entre setor público, universidades e instituições privadas na geração de conhecimento científico de impacto. Para a cardiologia brasileira, representa uma oportunidade de transformar informação em ação e de reduzir as desigualdades que ainda marcam o acesso à saúde cardiovascular no país.













